A cozinha tinha uma porta que dava para o quintal e na porta havia um postigo, um qua¬dro de quatro vidros. Naquele tempo havia mui¬tas moscas que poisavam e caminhavam nos vidros, vagarosas. De tarde, ela observava as moscas que não faltavam ao seu passeio ao sol, nos vi¬dros virados ao sul. Chegava-se mais à porta até elas debandarem. Deixavam marcas redondi¬nhas, pequeninas, nos vidros, que lim¬pava com os dedos, quando a mãe não estava a olhar. Lembra-se de encostar a cabeça ao vidro quente e ficar assim, apoiada, olhando o quintal e não o vendo. Nesse tempo, não sabe precisar quando, nesse exacto lugar e circunstância, en¬trou, sem se aperceber, no mundo misterioso e inquietante dos que colocam questões que nunca chegarão a ter solução. Encostada assim ao vi¬dro, muito quieta, formulava, interiormente, as perguntas fatais: Porque é que Eu sou Eu? Por¬que é que não sou outra pessoa? Porque é que tenho este corpo e não aquele? E desfiava, num mantra silencioso, uma afirmativa-dubita¬tiva: Eu sou Eu, Eu sou Eu, Eu sou Eu… Caía numa espé¬cie de torpor, perdida de si, até que, ao chama¬mento da mãe, um estremecimento lhe percorria o corpo, a anunciar o regresso de uma viagem por outra dimensão, talvez por um outro Eu, num outro corpo. As miúdas da sua idade gosta¬vam de tagarelar sobre a pergunta quem nasceu pri¬meiro, o ovo ou a galinha. Ela ria-se, encolhia os ombros e, depois de incitada a res¬ponder, ati¬rava um sei lá, a mostrar indiferença pelo as¬sunto que lhe parecia pouco interessante. Só uma vez se atreveu a dizer que o que lhe inte¬ressava mesmo era ter resposta à pergunta por¬que é que Eu sou Eu. As outras olharam-na com surpresa que logo se transformou em troça, de riso forçado. Não regulas bem, é o que é, e com o indicador davam pequenos toques no meio da testa.
Ainda hoje repete a pergunta, na certeza de que não obterá resposta. Conformou-se a habitar aquele corpo, a ter aquele nome, aquela vida com um Eu por dentro. O Eu que lhe coube, há já muitos anos, que bem podia ter cabido noutro corpo, noutro tempo, ou que nunca ti¬vesse sido senão uma pergunta a pairar, um passageiro a vogar eternamente, sem origem nem destino.
Licínia Quitério
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