Mário de Carvalho oferece-nos, na sua inconfundível escrita, um conjunto de narrativas curtas onde o insólito, a sua invulgar capacidade de observação e um apurado sentido de humor, são o fio condutor que nos prende à leitura. No primeiro conto, um jovem percorre a cidade com uma delicada missão: entregar a cabeça de Mânlio. A reação das pessoas muda quando se apercebem de que ele transporta a cabeça de Mânlio e, nesse momento, o discorrer dos seus dias, o que os ocupava até esse momento, parece esvair-se de sentido.
Levantei um pouco o braço e confirmei, suspendendo a caixa com a cabeça de Mânlio em frente dos olhos deles. Acalmaram-se ambos, não sem algum rancor.
As situações, para nosso deleite, são narradas com uma invulgar amplitude lexical. Os diversos personagens parecem aceitar com resignada estoicidade o estranho destino que lhes é imposto. Como se tivessem sido apanhados num momento errado e ao qual não faz sentido resistir. Vítimas de uma ordem excêntrica e de um esmerado apego ao rigor. Como o detido professor a quem, todos os dias, é servido pão e água numa baixela de prata; ou a promessa a que ficamos vinculados de comprar o passe social num dado guichet. Como se a vida, pela via da palavra, estivesse presa a uma fóbica questão de princípio. E nesse caso, o máximo a que podemos almejar, é que nos seja concedida a liberdade de pátio.
… e cada um dos olhos, quase estrábicos, parecia espreitar o que o outro via.
Este texto foi publicado no Acrítico, leituras dispersas em Outubro de 2013.
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