A Conversa de Bolzano, de Sándor Márai

Casanova, um nobre de Veneza, encontra-se em fuga da temível prisão dos Piombi. Percorre hortos e florestas com cautelas de lobo, deixando atrás de si um rasto de conversas de regozijo por alguém da sua cidade ter enganado o poder. A sua evasão, a provar ser o homem mais forte que o braço do carrasco, é recebida com júbilo e por toda a parte onde a notícia chega, existe quem sorria. Outra, é a forma como os senhores de Veneza, os que tinham por ofício manter os homens subjugados ao poder, encaram essa fuga. Porque não há nada mais perigoso do que um homem que não é capaz de se submeter à tirania.

 

Este é o mote para a construção do personagem. Não é pelo lado de aventureiro, pela fama de sedutor implacável, de perturbador de alcovas alheias que Sándor Márai nos oferece esta versão de Giacomo Casanova. Tal como nos adverte na nota prévia: não foi a vida mas o carácter romanesco do herói a interessar-me.

Casanova dedica a sua arte às mulheres por acreditar serem elas quem melhor compreende o seu gesto de rebelião, justamente, porque não contrariam os seus sentimentos e aceitam os argumentos mudos do coração. Elas retribuem-lhe com a maior das curiosidades, como se tivessem finalmente visto um homem pelo buraco da fechadura. Apenas um homem e mais nada, da mesma maneira que um carvalho é um carvalho e mais nada. Mas um tipo raro de homem, que nada afirma com grandes palavras e não faz ouvir a espada, não se gaba e não pede uma ternura diferente da que é capaz de dar.

Casanova revê-se como escritor, um homem empenhado em amadurecer a sua arte, alguém que ainda não gastou tudo o que a vida tem para dar. Escrever é um ócio dispendioso… Tenho de ver tudo para poder descrever os hábitos dos homens e os lugares onde fui feliz e infeliz, ou mais simplesmente indiferente.

Protegido pelo senhor de Bragadin, o tipo de homem que, pelas suas qualidades excecionais, vem referido nos livros de leitura, Casanova recorre ao crédito e instala-se em Bolzano com a devida dignidade. Nas tabernas joga com cartas viciadas para caçar algunscequins vagabundos e, com ajuda do seu companheiro de viagem, desenvolve uma atividade de conselheiro. Gente que o procura pela sua sabedoria: queriam um milagre, possuir sem nada dar em troca. Casanova usa de toda a sua destreza para, pagando dívidas, contrair outras e criar entre os moradores de Bolzano uma predisposição para lhe conceder crédito. Um risco de probabilidade imprevisível, aceite do mesmo modo que as pessoas acabam por se acostumar ao perigo.

Recebe notícias de um antigo rival seu: o Conde de Parma, com quem, anos antes, se terá batido por Constança. Será com ele que travará a primeira conversa e a segunda será com Constança, por desejo dela e consentimento do conde, seu marido.

O Conde chega à Estalagem onde Casanova está hospedado: não viera, «chegara»; não subira as escadas, «deslocara-se»; não parara no primeiro piso, «aparecera» e, em tudo isso, fora como uma aparição, uma visão do destino.

Tinham entre si uma conversa pendente que naquele dia fechava o seu ciclo. Nessa conversa existe uma palavra, insistentemente repetida pelo Conde: quase. Se Giacomo transporta na sua bagagem as emoções humanas, como os negociantes de panos carregam amostras e percorre o mundo numa permanente insatisfação que o leva a matar a sede ora nos bebedouros do gado, ora em taças de cristal, o Conde de Parma aprendeu, na sua velhice, que não se pode encerrar prematuramente os assuntos humanos, mas que também não os devemos deixar incompletos. Uma espécie de ordem a que ninguém escapa.

O Conde é portador de uma missiva e tem uma proposta para Casanova, simultaneamente generosa e humilhante. Propõe pagar-lhe em ouro e caridade, comprá-lo, se preciso for,como um escravo no mercado de Esmirna, como um objeto raro numa das lojas da ponte dos ourives em Florença. Um ultraje sem nunca dispensar as regras da arte do belo discurso com qual seduz Casanova. E a palavra “quase”, já proferida e sempre repetida. O tempo de vida que resta ao Conde, não sendo muito, é o que lhe cabe e o suficiente para amar. Quase; uma palavra que possui uma força fascinante, capaz de iluminar o futuro e o passado ao mesmo tempo.

Constança surgirá mais tarde, quando o Conde já se tiver retirado. Está disposta a tudo. É pouco, protesta Giacomo. É pouco, concorda ela. O quase pouco que falta viver ao Conde de Parma e lhes deixa com um quase nada para oferecer um ao outro.

A escrita de Sándor Márai, banhada pela luz de ouro da idade madura, é de um irrepreensível deleite. São extensos monólogos, porque nada existe mais desinteressante do que uma conversa. O interlocutor passivo insinua-se através de pequenos gestos ou na inflexão da voz de quem fala. Um jogo de cartas honesto e viciado ao mesmo tempo, dissimulação e bluff: a suprema batota da vida.

Quando estamos em perigo, agarramo-nos até à corda da forca se preciso for.

 

(publicado no Acrítico, leituras dispersas)

 

António Ganhão

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