Viver no Fim dos Tempos é a mais recente grande obra de Slavoj Žižek, grande pelo seu meio milhar de páginas, grandiosa pelo estilo, e também grande pelo tema. O título apocalíptico não engana inteiramente. O mais célebre marxista dos nossos tempos vem com este livro profetizar o fim do sistema capitalista global, a caminho do seu “ponto-zero apocalíptico”, levado nos ombros de quatro cavaleiros do Apocalipse.
E com efeito, no lugar da Fome, da Guerra, da Peste e da Morte, Žižek prenuncia tempos de destruição trazidos pela crise ecológica mundial, os desequilíbrios intrínsecos ao sistema capitalista liberal, o explosivo crescimento das exclusões sociais e, ainda, a revolução biogenética. No cerne destes tempos derradeiros, o pensador esloveno identifica um mal-estar, que não é o da Civilização, como em Freud, mas o do capitalismo liberal, que, depois do fim do socialismo real, se hegemonizou por todo o mundo, quer o das relações humanas, quer mesmo o mundo natural, ou a sombra do que este terá sido, entretanto levado à exaustão dos recursos e à manipulação brutal, por um sentido ilimitado de posse utilitária de todo o mundo.
O mal-estar ressalta, por exemplo, na pergunta que nas ex-repúblicas de Leste se tornou insistente: «por que continuam as nossas vidas a ser tão miseráveis?» Se, ao menos, não havendo riqueza, mais e melhor liberdade se tivesse alcançado. Mas, nem isso. Para Žižek foi fogo de vista, sarcasticamente feito equivaler a pouco mais do que consumo de bananas e pornografia. E agora tratar-se-á de saber responder à frustração dos povos e saber fazê-lo melhor do que os populismos nacionalistas. Porque atrás dos tempos vêm novos tempos, o que é o mesmo que dizer que os tempos morrem mas nós continuamos cá, sobreviventes ao trauma.
É, aliás, precisamente a ideia de um processo de luto que organiza a sucessão dos capítulos deste livro. Inspirado no estudo que Elizabeth Kübler-Ross, uma psicóloga suíça, fez sobre as fases do processo de luto, Žižek projeta cada uma dessas fases do luto como capítulos, que serão também etapas do desenvolvimento e superação do mal-estar. “Denegação”, “cólera”, “negociação”, “depressão” e “aceitação” designam as cinco fases que se sucedem no processo de luto. Do «não aconteceu» à violência contra o que aconteceu, cuja impotência desespera na tentativa de negociar um regresso que já não é possível, até, finalmente, à reconciliação, vai todo um processo que encontra correspondências, passo por passo, com o mal-estar ideológico. A denegação sob a forma de ocultações ideológicas, particularmente exemplificadas nas grandes produções cinematográficas de Hollywood; a cólera nos atos radicalmente destruidores, como os do fundamentalismo religioso; a negociação na necessidade de um retorno à crítica da economia política; a depressão, em novas “patologias subjetivas”; por fim, a aceitação, como constituição ou reconstituição de uma “subjetividade emancipatória”.
Apesar do seu valor heurístico, este paralelo tem limites. Por exemplo, diversamente do que sucede no luto, onde a negociação prolongaria, por outros meios, o fracasso do impulso violento contra a morte, Žižek está verdadeiramente apostado na etapa negociadora e no que ela se traduz em retorno à discussão ideológica da economia política, com retoma da velha ênfase na infraestrutura económica. Neste ponto, convém bem marcar as diferenças para com as perspetivas demasiado centradas na ideia de cultura política, que têm em Hannah Arendt o exemplo extremo, que chega a destituir de sentido qualquer ideia de uma economia política, ao considerar a conjunção dos dois termos “economia” e “política” uma mera contradição.
Em todo o caso, a força do paralelo, entre o enlutar e o mal-estar, descobre-se na sucessão idêntica das fases que ambos os processos envolvem. Por essa razão, a analogia aproxima-se de uma homologia. Mas, além da riqueza da descrição da sua fenomenologia e da interpretação dos seus nódulos, por que se padece deste mal-estar? De acordo com Žižek, a sua razão de ser reside num paradoxo endógeno ao próprio capitalismo liberal:
O progresso do capitalismo, que tem necessidade de uma ideologia consumista, está a minar pouco a pouco a própria atitude (a ética protestante) que tornou o capitalismo possível – o capitalismo funciona hoje cada vez mais como a “institucionalização da inveja”.
Por outras palavras, poupança e consumismo são termos mutuamente excludentes e, no entanto, o capitalismo liberal não se sustenta se não mantiver ambos.
Merece a pena notar que este paradoxo, posto nestes termos tão gerais, embaraça a alegada especificidade portuguesa que se tornou habitual relevar, com ampla cobertura mediática, entre elites intelectuais nacionais. Com efeito, a gasta perceção de que em Portugal as pessoas gastam mais do que têm transmuta-se, com toda a evidência, num exemplo que repete o padrão, dentro da lógica zizekiana, do paradoxo do capitalismo liberal. E a amarga imputação de que em Portugal “a inveja não é um sentimento, é um sistema”, que tem a sua explicação no facto de sermos uma “sociedade fechada”, célebre tese de José Gil, e profusamente amplificada por todas as consciências nacionais, esbarra contra a interpretação zizekiana de que a inveja, bem pelo contrário, é resultado de sociedades abertas, e é, para o bem e para o mal, um fenómeno coextensivo ao mal-estar do capitalismo, ou seja, fenómeno plenamente global. O extraordinário, com uma pitada de ironia, e com todo o mérito para Žižek, é que ele alcança o mesmo diagnóstico sobre a nossa situação quando o mais provável é que saiba tão pouco de especificidades identitárias lusas como nós das eslovenas.
Este é um livro que se pode ler como ensaio dotado de sistematicidade, mas que também se pode ler, de maneira muito estimulante, como uma sequência de reflexões, sempre brilhantes, e quase sempre polémicas. Como, por exemplo, a de que, afinal, o liberalismo económico, de direita e geralmente associado a valores culturais conservadores, por um lado, e o liberalismo de esquerda, multiculturalista e tolerante, por outro, são muito mais parecidos do que se julgam, desempenhando realmente papéis diferenciados, mas que propulsionam o mesmo sistema. De um lado, uma «direita tradicionalista que apoia a economia de mercado ao mesmo tempo que rejeita ferozmente a cultura e os costumes que essa economia engrendra»; do outro lado, uma «esquerda multiculturalista, que combate o mercado (…) enquanto apoia entusiasticamente a ideologia que o mercado engendra». É o que se poderia classificar como uma perfeita divisão do trabalho, inculpando-se uma à outra, a esquerda e a direita, a parte que deixou à outra completar. O sistema iliba-se é certo, mas não sem erodir a sua própria significância ao ponto de nos restar apenas a condição de uma democracia pós-política.
Na atual democracia pós-política, a bipolaridade tradicional entre um centro-esquerda social-democrata e um centro-direita conservador tem vindo a ser progressivamente substituída por uma nova bipolaridade entre a política e a pós-política: entre o partido tecnocrático-liberal e multiculturalista-tolerante da administração pós-política a sua contrapartida da direita populista, promotora de uma combatividade política.
Uma outra reflexão, não menos polémica, de Žižek retorna à difícil problemática da interdição do véu integral em França. Pergunta o autor: «Porque desencadeará o confronto com um rosto tapado tanta ansiedade?» A interpretação proposta, a partir do ângulo lacaniano, subverte por inteiro a perspetiva, tão bem enfatizada por um Lévinas, do rosto desnudado e, assim, exposto como um absoluto relacional. Para Zizek, pelo contrário, porque o rosto é máscara, só sendo coberto se desmascara.
O porquê de tanta ansiedade causada pelo rosto encoberto: confronta-nos diretamente com o abismo da Coisa-Outra, com o Próximo na sua dimensão estranhamente inquietante. Justamente o encobrir o rosto oblitera um escudo protetor, fazendo com que a Coisa-Outro nos fite diretamente (…).
Um último exemplo de reflexão tão surpreendente quanto perturbante encontra-se na fascinante incursão de Žižek pelo enredo de um filme de animação da Dreamworks, o célebre Panda Kung-fu. A inocência da animação permite promover, a seu ver, a mais pura ideologia. O filme conta a história de um urso panda que, apesar da aparente inépcia e da sua compleição bastante obesa, se torna um guerreiro lendário. O segredo do sucesso é um ingrediente secreto que, na verdade, consiste em nada, o que equivale a dizer que toda a força do herói está, afinal, contida na sua convicção de ser capaz. A fraqueza relativa torna-se força absoluta porque nada havendo a determiná-la também nada a pode afetar. Mas, o que parece maravilhoso é, na verdade, apenas pensamento mágico recreado por fórmulas tautológicas que disfarçam a sua vacuidade.
Estes são apenas exemplos entre as largas dezenas de exercícios criativos de análise que Žižek proporciona aos seus leitores. Frui-los com capacidade crítica é o exercício que se pode esperar do seu leitor. Este jogo é, de parte a parte, o desafio de resistência às ideologias que mais falta faz em tempos de “fim”. Žižek lembra, com alguma graça, que num debate com Bernard-Henri Lévy, em que cada um defendeu pontos de vista muito antagónicos, ele mesmo o comunismo, e Bernard-Henri a tolerância liberal, ambos fizeram-no, contudo, de forma tão patética que não conseguiram deixar de concordar com o que o outro dizia.
Esse sentimento de acordo recíproco provava que nos atoláramos ambos na ideologia: a «ideologia» é precisamente essa redução à «essência» simplificada que comodamente esquece o «ruído de fundo» que dota de densidade o seu sentido efetivo.
E talvez seja precisamente esta a melhor razão para continuar a ler Slavoj Žižek. Os seus livros são o ruído de fundo que não dá descanso aos esquemas ideológicos, trazendo ao espetáculo do debate os mil ruídos mínimos com que a realidade nos surpreende a ideologia.
Ficha técnica do livro:
Título: Viver no fim dos tempos
Autor: Slavoj Žižek
Editor: Relógio d’Água
Tradução: Miguel Serras Pereira
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico – convertido pelo Lince.
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