O prémio D. Dinis vai já em trinta e uma edições, uma vez que foi, pela primeira vez, atribuído em 1980. É uma idade respeitável para um prémio que tem distinguido todos os géneros, não sendo esta a primeira vez que o seu júri distingue o trabalho de um ensaísta. Nomes como os de M. S. Lourenço, Eduardo Lourenço e Vítor Manuel Aguiar e Silva, contam-se entre aqueles que o receberam, assim alinhando de pleno direito com ficcionistas, poetas e tradutores. A essa ilustre galeria vem agora juntar-se, muito merecidamente e por deliberação unânime do júri, o nome de João Barrento, o qual, de resto, já estava de algum modo ligado a esta casa, uma vez que prefaciou a colectânea de John Ashberry, Uma Onda e Outros Poemas, editada pela Quetzal em 1992, na colecção «Poetas em Mateus».

A João Barrento a cultura portuguesa não deve apenas um trabalho incansável e rigoroso de tradução, interpretação e divulgação da grande literatura alemã do passado e do presente, contrabalançado pelos esforços que tem desenvolvido com o objectivo de tornar mais conhecida a moderna literatura portuguesa na Alemanha.

Devemos-lhe também, não direi um magistério, palavra que me soa pedante neste contexto, mas, falando mais terra-a-terra, uma interpelação que ele nos faz em termos muito especiais e muito pessoais, e que se tem vindo a exprimir numa obra ensaística vasta e complexamente articulada. Dessa obra são de destacar títulos como A Palavra Transversal, literatura e ideias no século XX (1996), Uma Seta ao Coração do Dia, crónicas (1998) que, não obstante crónicas, não deixam de ter um marcado pendor reflexivo e ensaístico, Umbrais, o pequeno livro dos prefácios (2000), que reúne, nas suas quase 300 páginas, não apenas prefácios de que João Barrento é autor, mas também intervenções e apresentações literárias muito variadas, A Espiral Vertiginosa, ensaios sobre a cultura contemporânea (2001), O Poço de Babel, para uma poética da tradução literária (2002) e, agora, O Género Intranquilo, anatomia do ensaio e do fragmento (2010), causa próxima do prémio D. Dinis que, sendo embora atribuído a propósito de um livro publicado no ano anterior ao da deliberação do júri, se tem vindo a consolidar como prémio de consagração da carreira de um autor.

Basta o simples enunciado bibliográfico a que acabo de proceder para se fazer ideia de que o ensaísmo de João Barrento se desdobra numa grande versatilidade temática, a convocar as mais variadas disciplinas nos seus trajectos multidireccionais. A reflexão de João Barrento abrange e interliga a estética, a cultura, a filosofia, a política, a teoria e a prática literárias no arco que vai dos clássicos aos novíssimos, a ideologia, a questão das vanguardas, a problemática da tradução, a temática europeia e os grandes marcos do pensamento europeu dos últimos 200 anos…

Em O Género Intranquilo, é-nos apresentada uma espécie de poética do ensaio, uma poética no seu elaborar-se, sequência in progress que quer surpreender a sua formação a partir de uma espécie de impulso primordial, de uma solicitação intelectual que emerge da razão, da emoção, das epifanias e das palavras do ensaísta, e avança, na sua luta pela expressão, de uma certa desordem para uma certa ordem, até começar a fixar-se e a sedimentar-se qualquer coisa cuja progressão faz um sentido e este se propõe como hipótese de sentido do mundo, exactamente na medida em que o mundo implica uma necessária refracção subjectiva. De resto, é muito interessante atentar nas pequenas vinhetas que fazem contraponto a algumas passagens do livro. Recordo-me de ter visto algumas — se não eram estas, eram muito pareceidas… — num blogue do autor na Internet. São notas, rabiscos, desenhos, mandalas, fragmentos de textos autografos que dão corpo às imagens da deriva, da procura a partir de um tópico, do ganhar de consistência daquilo que virá a organizar-se como ensaio.

Ao mesmo tempo e por via de metáforas colhidas nos mais variados domínios, do orgânico ao mineral, do animado ao inanimado, do concreto ao abstracto, ao mitológico e ao simbólico, por vezes com processos que se diriam trair o trato continuado que João Barrento com a escrita de Maria Gabriela Llansol, esse olhar sobre o ensaio vai-se construindo como poética do género e vai-se questionando sobre a gestação e o significado do texto enquanto ensaio, ou via tentada para o auto-conhecimento. É, por um lado, uma abordagem de matriz fenomenológica do simples acto de discorrer ou deambular discursivamente sobre alguma coisa e, por outro, uma tentativa — isto é, um ensaio —  de chegar não apenas ao que explicitamente se diz, mas também ao que se implica na parte dos silêncios ou hiatos daquilo que fica por dizer.

Repare-se em dois aspectos curiosos: anatomia do ensaio e do fragmento, diz o subtítulo. Por aí, como que se enlaçam o Robert Burton, contemporâneo de Shakespeare, autor da célebre Anatomy of Melancholy, e Walter Benjamin, um dos principais cultores de um ensaísmo do fragmentário no século XX, a quem João Barrento tem dedicado importantes reflexões.

Mas, e uma vez que de ensaios se trata, o autor não podia deixar de aludir a Montaigne. Quando fala no “trabalho na corda bamba do sentido. Aventura em terreno movediço, exercício de pensar: vacilante, oscilante (…)”, João Barrento tem certamente presente uma formulação do autor francês: “certes c’est un subject merveilleusement vain, divers et ondoyant, que l’homme : il est malaysé d’y fonder jugement constant et uniforme”.

É exactamente nisto que se funda uma «anatomia», isto é, um corte seguido de análise e descrição por segmentos. A anatomia implica o estudo da organização estrutural dos seres vivos e também pode significar a abertura ou forma da boca, dois aspectos que relevam simbolicamente para o a natureza e a formulação verbal do ensaio.

Mas estamos perante uma abordagem do ensaio e do fragmento, que é também devedora de Musil, de Benjamin e de Adorno, ou não fosse o autor um grande especialista do moderno pensamento alemão sobre as artes e as letras e a sua relação com a sociedade e o mundo, com a consciência de que a verdade, se verdade existe, apenas se deixa pressentir, ou entrever, mas nunca atingir. Ou, como João Barrento regista, “(…) a verdade não está atrás do véu. É, quando muito, um brilho que nos cegará”.

Montaigne escrevia em 12 de Junho de 1580, dirigindo-se ao leitor: «C’est icy un livre de bonne foy, lecteur. (…): car c’est moy que je peins. (…) Ainsi, Lecteur, je suis moy-mesme la matiere de mon livre.» Quatro séculos mais tarde, José Saramago viria a recordar esse tratamento de si mesmo como « a substância, a matéria do ensaísta ».

Essa matéria, que no género ensaio costuma surgir por derivas quantas vezes fragmentárias, tem o seu correlativo objectivo noutro passo do escritor bordalês : «chaque homme porte la forme entiere de l’humaine condition» (Les Essais, III, II)[1].

A segunda parte deste texto será publicada a 28/11

[1] Michel de Montaigne, Les Essais, ed. Pierre Villey, Paris, PUF, 1965, p. 805.

Vasco Graça Moura

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