«Un Autre Visage de l’Europe» (editions Noir sur Blanc, 1989), de Tadeusz Mazowiecki, com prefácio de Jean-Marie Domenach, é uma obra esquecida que deve ser relida e revisitada no momento em que o seu autor nos deixou há muito pouco. O livro reúne diversos textos fundamentais que nos permitem seguir a resistência intelectual polaca e o início da transição democrática.
SÍMBOLO EUROPEU
Tadeusz Mazowiecki (1927-2013) é um dos símbolos da democracia polaca e da Europa contemporânea. Não o conheci pessoalmente, mas fui amigo de dois dos seus mais próximos companheiros, Jacek Wosniakowski (membro do Centro Nacional de Cultura) e Bronislaw Geremek. Acompanhei, por isso, a sua ação muito de perto, também graças ao conhecimento de Adam Michnik, um antigo resistente duramente perseguido e um dos grandes jornalistas contemporâneos na «Gazeta Wyborcza». A vida e o pensamento deste homem permitem compreender como o fim da guerra fria e a queda do muro de Berlim puderam ser preparados e antecipados. É verdade que a eleição de João Paulo II como Sumo Pontífice em 1978 suscitou a aceleração dos acontecimentos, mas devemos dizer que sem a participação persistente dos intelectuais e leigos católicos polacos na defesa da liberdade nada teria sido possível. T. Mazowiecki foi um dos mais influentes políticos cristãos na preparação da democracia no centro e no leste da Europa. Foi um dos mais determinantes discípulos de Emmanuel Mounier (ao lado de Jacques Delors), que soube interpretar fielmente a defesa feita em 1932 na revista «Esprit» sobre a necessidade de os cristãos se associarem aos não cristãos na construção, na cidade terrestre, de uma sociedade aberta e solidária, livre e responsável, assente na eminente dignidade da pessoa humana. Tadeusz Mazowiecki nasceu em Plock (18.4.27), no coração da Polónia. Fez os seus estudos de Direito em Varsóvia, sendo profundamente influenciado pela doutrina social da Igreja. Começou por militar na associação política católica Pax, até ser dissolvida, participando depois de 1955 na criação do KIK (Clube de Intelectuais Católicos) e na fundação da influente revista «Wiez» (Elo), onde (sob a inspiração de Mounier) lança a reflexão que visa suscitar um ambiente capaz de contrariar a lógica totalitária, aproveitando as margens toleradas pelo regime. Assim, procura forçar uma evolução gradual das instituições, aproveitando a tímida abertura de Wladislaw Gomulka.
PREPARANDO A TRANSIÇÃO
Em 1961, é eleito para a Dieta como membro do grupo de deputados católicos independentes do Znak (ligados a uma prestigiada corrente de reflexão e a uma editora, que viria a ser dirigida por Wosniakowski). Compreende depressa que a abertura de Gomulka é débil e efémera. Em 1968, protesta contra a repressão dos estudantes, a vaga de antissemitismo orquestrada pelo poder e a invasão soviética da Checoslováquia. Conhece e apoia o jovem Adam Michnik, que acolhe, sob pseudónimo, na redação da revista «Wiez» – ao lado de outro inconformista, Jacek Kuron. Em 1970, sendo a abertura impossível, rompe definitivamente com o poder. Inicia-se um tempo difícil de provação e perseguições. Encontra de novo Michnik e Kuron no Comité de Defesa dos Operários (KOR), apoia as atividades do grupo, defende as vítimas da repressão e contribui para a criação das Universidades volantes. E chega o momento decisivo em que, em agosto de 1980, com Bronislaw Geremek vai ao encontro dos grevistas dos estaleiros de Gdansk. Esse episódio mudará o curso dos acontecimentos. Com Lech Walesa, lançam as bases do «Solidariedade» – o primeiro sindicato independente do mundo comunista. As vicissitudes são conhecidas. Na noite de 13 de dezembro de 1981, o general Jaruselski decreta o estado de sítio para destruir o Solidariedade, que passa à clandestinidade. Mazowiecki é preso. Só será libertado ao fim de um ano. Desenvolverá então intensa atividade clandestina – através da imprensa e de encontros informais. Segue atentamente a Perestroika de Gorbatchov. Até 1989, criar-se-ão as condições para a realização de negociações e para que se alcancem importantes acordos na Mesa-Redonda com as autoridades, que permitem a vitória eleitoral do «Solidariedade» e a nomeação de um católico como o primeiro Chefe do Governo não comunista no mundo coletivista. O Solidariedade é legalizado, podendo apresentar candidatos às eleições de 4 de junho de 1989. A vitória é esmagadora. Abre-se a porta ao que culminará, em 9 de novembro de 1989, na queda do muro de Berlim e no fim do poder soviético (1991). Nomeado primeiro-ministro, o antigo militante católico toma todas as precauções, para não pôr em causa a transição, uma vez que há uma coabitação com a velha guarda comunista e o general Jaruselski. Completa-se, assim, a nova vaga democrática iniciada em Portugal em 1974, segundo Samuel Huntington. O programa de Mazowiecki é complexo e simples: construir um Estado de direito, criar a economia social de mercado, fazer a Polónia sair da ruína e reunir-se à Europa. Para dirigir a reforma económica escolhe Leszek Balcenowicz, que põe em prática com sucesso a célebre «terapia de choque». Importaria salvaguardar os passos graduais e seguros, o que levou os caricaturistas a representarem Mazowiecki como a tartaruga da fábula. Assim, recusa a caça às bruxas e os ajustes de contas, o que o levará, mais tarde, a ser crítico de alguns companheiros. Então o Solidariedade divide-se e Mazowiecki apresenta-se contra Walesa na eleição presidencial de 1990, que este último vence. Apesar dessa contenda, L. Walesa, há dias, ao tomar conhecimento da morte de Mazowiecki considerou-o o melhor primeiro-ministro da democracia e um político exemplar de excecional honestidade.
POLÍTICA NO MAIS NOBRE SENTIDO
Em «Un Autre Visage de l’Europe», Mazowiecki fala da necessidade de uma política antipolítica, usando deste modo um jogo de palavras que, não pondo em causa a nobreza da política como responsabilidade cívica, a afasta totalmente da politiquice e dos jogos imediatistas. Foi essa a sua coerência, que o levou a afirmar que a política deve ser o lugar «onde respirar a verdade e poder fazer tudo pela verdade é um fator de liberdade». Cristão e católico de uma coerência exemplar, demitir-se-á mais tarde de relator especial da comissão de direitos humanos das Nações Unidas para a ex-Jugoslávia, ao verificar não poder tomar decisões que fossem relevantes e pudessem contribuir para a paz. Perante a falta de coragem das grandes potências confrontadas com a «odisseia trágica» dos muçulmanos em Srebenica, recusa-se a participar num processo aparente e ilusório, insuscetível de garantir a defesa e a salvaguarda dos direitos humanos (1995). Mazowiecki é o exemplo do cristão que não volta a cara às responsabilidades. Acreditou na força do «compromisso político» e deixou-nos, como outros cristãos (Giorgio La Pira e Robert Schuman), a demonstração de que o combate à indiferença exige uma responsabilidade cívica determinada (v. Guy Coq, «Mounier: o Compromisso Político», Gradiva).
Guilherme d’Oliveira Martins