Raimundo | Conto II | Colectivo Nau | Ana Saragoça

Dizem que Raimundo conhecia muito mundo. É uma afirmação que já se transformou em provérbio naquela aldeia da Beira Baixa, entalada entre serranias inóspitas e cada vez mais vazia. Raimundo homem é hoje uma imagem esmaecida na memória dos mais velhos, mas a sua presença imponente ainda habita os sonhos de quem cresceu na aldeia e hoje labuta pelos sítios mais díspares do planeta. Sim, estes homens e mulheres aprenderam a sonhar o mundo pela boca de Raimundo e por ele foram em sua busca.

Em Maio de 1968, quando de Paris irradiavam ondas de choque que agitavam o statu quo em toda a Europa, especialmente as juventudes do Sul, famintas de liberdade, aquela aldeia viveu também a sua revolução. Mas, como a sua juventude era faminta apenas, tolhida e atrofiada por gerações mal alimentadas e que da vida conheciam apenas o milenar imperativo ora et labora, a revolução foi a chegada de Raimundo. E lá por ser mais pequena não foi mais limitada do que a que abalou o vasto globo, desconhecido de todos porque ali não chegavam jornais, rádio e muito menos televisão. As notícias, escassas e atrasadas, chegavam por via do padre, que para bem do rebanho as limpava de espinhos e elementos perturbadores. A única verdade que não tinha conseguido maquilhar fora a da guerra, uma vez que quem regia os destinos da Nação, se sempre esquecera aquele recanto serrano, não o eximia do patriótico dever de mandar os filhos lutar por algo que eles nem tentavam entender. A população recorria aos únicos expedientes que conhecia em prol dos seus rapazes: as mulheres rezavam ardentemente para que os seus rebentos não fossem saudáveis a ponto de serem dignos de morrer, e os homens, ao contrário dos seus pais e avós, suspiravam de alívio quando lhes chegava a nova de terem gerado uma moça.

Raimundo chegou à boleia numa carroça de ciganada, e só mostrou não lhes pertencer quando, de saco da tropa ao ombro, resolveu apear-se ali enquanto os outros seguiam. Era homem dos seus cinquenta anos, de bigode farto e olhar penetrante, umas farripas de cabelo grisalho e rebelde a espreitar-lhe na nuca sob o boné. Atravessou a praça sob os olhares do mulherio escondidos pelas portadas das janelas, e a sua entrada na venda silenciou todas as conversas dominicais. Não se preocupou em conquistar a simpatia dos presentes com técnicas elaboradas. Tomou-a de assalto, desejando boas tardes em voz potente e confiante, e oferecendo uma rodada. Não havia memória de um forasteiro chegar tão depressa aos corações dos locais, de seu natural desconfiados. A falar verdade, não havia memória de um forasteiro desde que 20 anos antes o pároco ali arribara, e isso nem podia considerar-se um forasteiro, era só o novo funcionário do Altíssimo, desinteressado e distante como o patrão, maldizendo a atribuição de freguesia tão pouco prometedora.

Raimundo era alentejano, isso saltou logo aos ouvidos dos presentes, pois todos viviam anualmente a odisseia dos ratinhos, migrantes beirões que desciam à planície nas épocas da ceifa e da apanha da azeitona. Era sim senhores, confirmou, nado e criado na vila da Cuba, onde tinha nascido também o grande navegador Cristóvão Colombo – e aqui todos os copos se suspenderam a meio caminho das bocas abertas de pasmo. Homessa, não sabiam? Então porque pensavam que ele chamara Cuba à primeira terra a que aportou na América? E logo ali Raimundo os enredou numa narrativa fascinante de espionagem luso-castelhana. Quando foi chegada a hora do jantar, já Raimundo era indispensável à aldeia. O que convinha a ambas as partes, porque ele tinha exactamente precisão de ali assentar arraiais.
Depois de uns dias a trouxe-mouxe, pernoitando aqui e ali, Raimundo instalou-se na casa do falecido padeiro da aldeia. Ao que parece o homem tinha paulatinamente mantido duas famílias em vida, e pela sua morte a viúva não-oficial, vendo-se só, pobre, desvalida e desgraçada, tinha-se enforcado, não sem antes deixar os dois filhos entregues, por via do pároco, à legítima esposa enlutada. Esta, convencida pelo senhor prior que criar os mocinhos junto das filhas era a vontade divina, lá se sujeitara, contrariada. E assim tinha ficado a casa da rival ao abandono, apesar da excelente localização, em pleno largo da vila. Raimundo oferecia-se para pagar uma renda modesta e a entregar-lhe parte das nozes, laranjas, limões e do mais que crescesse no quintal.

Entretanto o Verão ia chegando, e com ele a vontade de seroar ao sereno, conversas a meia-voz, olhos atentos a quem passava. Como uma força desconhecida, o largo defronte da casa de Raimundo atraía todos depois do jantar, a começar pelas crianças, sentadas no chão, de pés descalços a fazer cócegas à terra. Sentado no degrau de pedra, aquele homem de voz hipnótica contava como era o cultivo de cacau no Brasil, como os masaï, altos e nobres, corriam pela planície africana, como na Noruega se secava o bacalhau que se comia no Natal casado com as couves da aldeia, como o canto das mulheres do Rif se ouvia das ruas, arrastado, dolente, infinito, encantatório, como os espanhóis tinham eliminado civilizações superiores à força de vírus e espadeirada, como no Japão se erguiam ondas altas como as serras que envolviam a aldeia e engoliam populações inteiras, populações essas que viviam em casas de bambu e papel. Papel? Sim, papel. E não havia móveis, e as camas eram enxergas que de manhã se enrolavam e guardavam, e as almofadas eram banquinhas de madeira, credo, coitadinhos, dizia uma mulher. Não, coitadinhos não, explicava Raimundo, era um povo superior, o mais delicado que se podia encontrar, de gestos minuciosos e vozes suaves, e sabem quem deste lado os encontrou primeiro? Os portugueses, sim. Que eram umas bestas barbudas sem limpeza nem educação, e que lhes levaram as primeiras armas de fogo.

Aquelas horas após a ceia tinham-se transformado no momento mais ansiado na aldeia. Faziam esquecer por momentos a ausência de moços novos, perdidos por matos de que Raimundo evitava cuidadosamente falar. As cabeças de todos começaram a encher-se de sonhos: as crianças nos bancos da escola olhavam para o quadro e viam a erupção do vulcão dos Capelinhos, que durara um ano e acrescentara quilómetros de terra negra à Ilha do Faial; os velhos atrás das ovelhas eram tuaregues no deserto; as mulheres espremendo e voltando a espremer a massa dos queijos na francela olhavam para a correnteza de soro a caminho do alguidar e viam o Danúbio atravessando a Europa e inspirando valsas pelo caminho. O taberneiro passava os copos de vidro grosso na água da tina de folha, mudada todas as semanas por questões de higiene, e via-se ao balcão de um saloon no Oeste americano, com pioneiros a passarem-lhe à porta e rechonchudas mulheres da vida a dar alento à cóboiada.

Aos Domingos, o padre erguia a cabeça desatenta e já não encontrava uma mole abúlica a papaguear as orações. Sim, papagueavam-nas, mas com um enfado de quem agora sabia mais, de quem ao cerrar os olhos exaustos entrava num mundo de cores que antes desconhecia. Um dia depois da missa encheu-se de brios, e de jovialidade postiça afivelada no rosto dirigiu-se à venda para conhecer o tal Raimundo que ousava ameaçar o seu ascendente sobre aquelas ovelhas. Entrou a matar com uma ou duas frases de Santo Agostinho que lhe tinham ficado do seminário, e foi triturado sem piedade por São Francisco de Assis, por Lutero, por Calvino, e por fim por Bertrand Russell, que nem ele sabia quem era, mas que a avaliar pelo que dizia tinha as chamas do inferno à espera, se é que não estava já lá a assar. E aquele demoníaco Raimundo sem perder o sorriso humilde, a falar como se lhe estivesse a prestar reverência, a salvar-lhe a face perante os paroquianos quando na verdade lhe deixava a alma inchada de hematomas! Dia negro para o padre, para a Igreja, para a Cristandade!
Apertava com as mulheres no escuro da confissão, cuidado, minha filha, o teu marido está longe, o teu pai perdeu os trambelhos e anda pela serra feito parvo, esse Raimundo disse-te, fez-te, aconteceu-te? Diz-me lá, meu anjinho, o Raimundo mexe-te debaixo da saia? Não te acanhes, moço, ele alguma vez te pediu que lhe fizesses isto ou aquilo? Rapariga, ele não tenta abrir-te os botões da blusa, não te leva a mão para ali? O teor das perguntas tornou-se de tal modo escabroso que o mundo que Raimundo narrava na sua voz cantada de alentejano passou a ter um contraponto horrendo nos sussurros e arquejos do padre. Quando aos homens chegaram os relatos daqueles interrogatórios cheirando a cera e a deboche, foram peremptórios: acabavam-se as confissões, ia-se à missa e estava a obrigação comprida, não admitiam que a pretexto de lhes salvar as almas o padre enchesse a cabeça de mulheres e crianças com coisas que ninguém naquela aldeia sabia sequer que existiam.

Ao ver a freguesia escassear e deixar de lhe mostrar boa cara, o prior encheu-se de coragem e recorreu aos superiores. Estes informaram-se junto do poder dos homens: Raimundo era desconhecido de todos, nada constava. Acaso falava de política ao povo simples, tentava afastá-lo do lugar que Deus e o Governo lhe tinham destinado nesta passagem pela Terra? De cabeça pendida, o pobre sacerdote teve de admitir que não, Raimundo falava apenas do mundo que percorrera, de montanhas altíssimas e planíces sem fim e aves coloridas e homens exóticos e bichos que pareciam flores e arvoredo tão espesso que a luz do sol não chegava ao chão e de dunas imensas onde de longe em longe havia um riacho cantante à sombra de tamareiras e onde as alfaces cresciam como se tivessem sido plantadas num quintal da aldeia. Da Rússia, falava da Rússia? Da Rússia assim propriamente Rússia não, falava das estepes brancas de encandear, onde o meio de transporte eram carroças sobre patins, por vezes puxadas por cães. Bom, por aí não iam lá, ao menos falava da China? Ah, sim, da China já o ouvira falar, parece que nos tempos antigos enfaixavam os pés às meninas para os impedirem de crescer, era uma mania lá deles, mulheres de pés pequenos, e os pides pensando ai a minha vida. De fato e chapéu e expressão façanhuda fizeram uma visita de cortesia a Raimundo e saíram como entraram, enfadados com o tempo perdido por causa da dor de cotovelo do padreca. Nunca imaginaram que, se tocassem num cabelo daquele homem mágico, todos os habitantes da aldeia, cães e gatos incluídos, lhes teriam saltado ao caminho.

Foi depois disso que a visita quinzenal da carrinha do peixe passou a incluir uma novidade. Enquanto na parte de trás a peixeira Júlia despachava a freguesia, que mesmo pobre sempre lhe levava alguma sardinha e carapau, o peixeiro Ramiro retirava do banco da frente volumosos caixotes que passavam de imediato para a casa de Raimundo, à qual a carrinha estacionava mesmo rentinho. Ninguém sabia o que os caixotes continham, e os inquéritos caíam em saco roto, Ó Júlia, mas o que é que vem ali? Não são contas do meu rosário, isto dá meio-quilo mais um niquinho, queres que tire ou vai assim? E dali não saía mais nada. A gente perguntava, mas não se inquietava. O mais certo era serem tarecos para ele se instalar. Coisa má não havia de ser, que do Raimundo só chegavam sorrisos e sonhos. No entanto, não fosse o diabo tecê-las, e sem ser preciso combinarem-se, dos caixotes nunca chegou notícia ao padre.

Uma noite, ao deitar-se no quarto por cima da venda, pareceu ao taberneiro ouvir um ruído furtivo de passos no largo. Ainda fez um esforço para se chegar à janela, mas o sono foi mais forte e acometeu-o de um ressonar agudo ainda antes de pousar a cabeça no travesseiro. Espreitando, teria visto de fugida um vulto a esgueirar-se cosido às paredes, de saco da tropa às costas.
A manhã surgiu a contragosto, cinzenta, como se adivinhasse a cratera que ia abrir no coração da aldeia. A porta da casa de Raimundo estava escancarada, e dele nem sinal. Foi com algum receio, algum pudor, que ao fim de algum tempo uma mulher se decidiu a entrar. Só agora se davam conta de que em todo aquele tempo ninguém passara daquela porta para dentro.

O recheio não podia ser mais pobre, nem mais rico. Uma mesa, um banco, uma bacia e um jarro, um colchão de barbas de milho no chão, junto ao lume apagado. Tudo objectos que eles reconheceram por já existirem antes de a casa mudar de mãos. A diferença estava nas paredes. A madeira dos caixotes fora transformada em prateleiras, que, de cima a baixo, forravam a casa com o calor de milhares de livros. Os rapazitos, ainda com as letras frescas na cabeça, silabavam a custo títulos e nomes: na patagónia, o egipto notas de viagem, t e lawrence, viagens na minha terra, as chuvas vieram, wenceslau de moraes, a estepe, jorge amado, luís de camões, pearl buck, peregrinação, a pousada da sexta felicidade, somerset maugham, erico veríssimo, debaixo do vulcão, mark twain, a volta ao mundo em oitenta dias, paul bowles, as verdes colinas de áfrica, ferreira de castro, muitos, muitos, sem respeito por renome ou nacionalidade, apenas pela lonjura.
À tristeza e confusão iniciais foi-se sobrepondo lentamente a compreensão do que havia a fazer com o que tinham diante dos olhos.

Raimundo partira, mas tinha-lhes deixado o mundo.

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