Este romance abre com Carminho a ler O Processo de Franz Kafka, tendo como pano de fundo a queda de uma avioneta em Camarate, onde faleceram, entre outros, o primeiro-ministro e o ministro da defesa. Estamos nos anos 80. Anos de penúria, onde os estudantes universitários à espera de uma insípida refeição na cantina, sonhavam com um emprego estável e, medianamente, remunerado. Partilhava-se em grupo um maço de cigarros SG Ventil, a partilha era a resposta à economia do estudante. Estruturava-se o sentimento de pertença a um grupo. Não é possível olhar para o passado sem recordar os encantos de uma vida simples.
Joseph K. fora alvo de um processo, alguém o difamara. Um processo é isso mesmo: o prosseguir dos trâmites processuais com zelo e disciplina, uma ressaca da fé na humanidade. A lucidez cabe apenas a quem se sente deslocado, a quem não acredita no milagre de passar pelo buraco da fechadura para o jardim das maravilhas. Franz desconfia que lhe sublinham os livros de estudo. Talvez seja, ele próprio, escondido atrás de uma sombra antiga do que foi. Depois existe a miúda, Carminho, a vítima de todo este processo, a peça na engrenagem que Francisco recusou ser.
Como ler Kafka, sabendo que em momento algum acreditamos na salvação de Joseph K? Se nem na ficção existe lugar para a ingenuidade? Ficamos assim, sem saber o que fazer de toda a sabedoria acumulada geração após geração. No mundo da inocência, a sabedoria pode ser tão imerecida como uma treva que desce sobre nós. Nas escadas da faculdade, Francisco oferece O Processo a Carminho, ela aceita o livro e agradece. Depois envelhecem.
Carminho inicia uma viagem em busca de Franz, mas apenas encontra, em algumas mulheres, vestígios da sua presença. Personagens que vagueiam pelo mundo, de passagem. Ilusões esclarecidíssimas. Franz parece estar sempre um passo à sua frente, num outro local. Não que fugisse de Carminho, mas como alguém que nunca se cansa de a perder. Ou talvez Franz tenha ficado parado, misturando-se com as nuvens à espera de um vento que o levasse para uma ilha deserta, uma estrela longínqua, o paraíso. A ficção tem esse lado de construção do passado à medida que a escrita vai progredindo. Toda a memória deve ser uma história bem contada, ser ficção em sequências aleatórias e só depois se transformar em palavras de tinta, descendência direta do pensamento. Procura Carminho um desfecho feliz para o seu livro? Ou é apenas movida pela curiosidade de lhe conhecer o final?
Quem se deixa humilhar condena-se a si próprio, parece ser essa a lição que Carminho retira de Kafka. Por que se deixou então enredar pela máquina da justiça?
Procura Francisco, o seu Franz ficcionado, para tentar perceber por que desistiu de lutar e se entregou aos acórdãos até às cinco, habituando-se a uma vida que detestava. Por que não procurou atravessar a porta? Por que pediu ao seu sobrinho, escritor, que ficcionasse aquilo que não viveu? Pela curiosidade de perceber se teria valido a pena? Existe um Graal capaz de nos curar as feridas? Ás árvores, o chão exige raízes. A nós? Sangue.
A construção deste romance faz-se de apontamentos dispersos, encontros que parecem não ter lugar num mesmo tempo, sentimentos de irmandade num mundo global, monólogos fragmentos de um imenso diálogo. O todo alcançado sem nunca procurar a plenitude. Julieta Monginho convoca-nos para uma dimensão não linear da escrita, para esse afastamento da realidade que nos confere lucidez. Podemos sonhar o futuro ou ficcionar o passado, sem nunca os conseguir descodificar.
Nenhum processo nasce para a felicidade, isso é garantido. Somos os filhos da geração K que sobreviveu ao suicídio das grandes ilusões.
O alarido alastrou, tornando impossível a coerência e a razão.
(Publicado em Acrítico, leituras dispersas.)