Quando o jornal ficou vazio, pelas onze da noite, o antigo cronista voltou ao local do crime. Tinha deixado, por puro esquecimento, uma caneta que lhe era querida, recordação da mãe. No caminho lembrou-se daquele filme em que alguém beija as paredes de uma casa para ter a certeza de que regressará um dia. Seria “O Piano”? Talvez. Pouco importava. O cronista subiu então à redacção, encontrou a caneta, olhou as paredes, a desarrumação, os jornais de há várias semanas espalhados, os desportivos e a secção das revistas cor de rosa. O barulho era apenas o das ventoinhas dos computadores semi-adormecidos. Suspirou. Sentou-se na cadeira desconfortável do chefe. Talvez a falta de qualidade da mesma fosse a razão de tanta má disposição. Abriu a última edição do jornal, leu o editorial e ainda a cronista de quem gostava.
Tinham tido sexo nos sonhos dele. Apenas nos sonhos. Uma coisa tórrida e um pouco pirosa, mas o ex cronista – sim, porque afinal é um ex cronista – já sabe, há muito tempo, que o sexo é uma coisa mental e serve qualquer cenário. O dele seria, porventura, patético. Deixara aquele jornal, escrevia num outro, concorrente, melhor salário, mais salamaleques dos colegas, sempre a admirar a sua prosa e a colocar
likes na página do facebook. Não se podia queixar. Ali, na antiga redacção sentia-se melhor. Essa era uma verdade incontornável e indizível. Talvez por o terem tratado como uma pessoa normal. Um homem que gosta do Benfica, que diz merda, que prefere mamas a rabos, que viajou mas não tanto quanto gostaria e que mantendo o sentido de humor dizia e escrevia coisas certeiras. Alguém lhe tinha dito que ele era um espelho da sua geração e optara por rir. Nunca seria nada disso. Ninguém saberia a sua idade.
Levantou-se da cadeira do chefe e deu uma volta pela sala. Comoveu-se com a fotografia de um criança, um boneco de plástico e ainda um pião de madeira, tradicional. As coisas que as pessoas têm nas mesas de trabalho. Enfim. Com um suspiro, a caneta bem guardada junto ao coração, o ex cronista abandonou o passado e seguiu pela rua, virou à direita, fez-se à avenida. Na paragem de táxis fez sinal a um homem que fumava um cigarro e pediu para seguir para o bairro. O bairro seria sempre o bairro alto, não era preciso explicar muito. No restaurante, a namorada piscou-lhe o olho e perguntou se ele se importava de ficar na esplanada, apesar do piso irregular. Ele sorriu e abanou a cabeça. Depois ela, deixando cair o cabelo sobre o ombro, disse-lhe ao ouvido: “Vais ter comigo à casa de banho em dois minutos e tiro-te essa tristeza em dois tempo… ou três”.
Patrícia Reis