Livro de José Luís Peixoto

Acontece com Livro o que me acontece com qualquer outro grande livro. Prefiro sempre o que suscita o indizível e o inexplicável ao que se torna apenas confessionalmente dito. Como escrevi noutro texto sobre a mais recente obra de José Luís Peixoto, nada cabe e tudo se extravada em passagens como – “Os anos tinham passado sobre aquele livro. Em tamanho, o livro era uma espécie de morte. A Adelaide aceitou o livro e ajeitou-o na alcofa.” (p.68).

Habituei-me a ler José Luís Peixoto, entre o jeito críptico e a circularidade dos modos, como quem se confessa às paredes da sua “vila”: esse microcosmos diluído em silêncio, cal e matéria de feno que vai sempre contracenando e tratando a poética de JLP por tu. A narrativa, para além da história que vai vincando, vive sempre da elementaridade, da economia e da simplicidade que brota da economia de frases como – “Parei o carro, as cigarras” (p.215) ou “cheguei antes da minha mãe, missa demorada” (p. 216).

Livro coloca em cena uma época e assinala um tempo que se converte em instrumento do próprio progresso ficcional. Nesse sentido, afasta-se dos dois primeiros romances do autor – Nenhum Olhar (2000) e Uma Casa na Escuridão (2002) –, atemporais cada um a seu modo. E distancia-se da estrita circularidade do terceiro – Cemitério de Pianos (2006) –, ainda que a suspensão da narrativa, sem cisões drásticas, faça parte do leme habitual com que as histórias de JLP vão aparecendo. Um modo que vai somando fascínio e fragmento ao cumprimento do plot.

Reatemos o chamado espírito de época: Livro dá-nos conta da geração que, nos anos sessenta, emigrou para França – Saint-Denis e Champigny estão lá com cheiro a barraca –, e de que descende o narrador do próprio romance que se chama “Livro”: um ser “sem direcção”. Um nome realmente singular que a mãe, Adelaide, eterna apaixonada de Ilídio e casada com o militante político Constantino, dá ao filho trocando as voltas às legislações e, de certo modo, parodiando o cortejo do fazer literário e de muitos outros que o antecederam (o nome Josué – personagem central de Livro – surge associado aos “Livros Históricos” do período profético, ao fim e ao cabo colectâneas anónimas do séc. X AC). De facto, “Josué andava de dedo esticado, a apontar para terrenos de estevas e a projectar construções invisíveis no ar.” (p.175). Foi Josué quem criou Ilídio, desde o dia em que a mãe lhe desapareceu, relembremos.

E houve ainda outro dia mágico em que ambos os homens se separaram: “Não havia uma palavra simples que os descrevesse. A hora chegou como um prego enferrujado, a espetar-se entre as costelas”. Muitos anos depois, já sem Josué, é Ilídio quem testemunhará a maior das revelações: “A minha mãe diz que estão cansados de andar às escondidas, que já ninguém tem idade para isso. E ficam à espera.”.

Livro é um nome e é um livro. Um livro rico, denso, de percursos abertos e fecundo no espaço com que efabula rostos, espantos, sombras e sobretudo a terra como erupção de muitas vozes.