A poética da ascensão: memória vs. presente

No início de 2004, por sugestão de um cineasta, transpus o romance O Bolor de Augusto Abelaira em guião para um filme que nunca viria a realizar-se. Adaptação solitária e sem ecrã à imagem da larga maioria dos textos e da larga maioria do vivido. Nem sempre a vida é um texto e nem sempre um texto emerge da nossa própria vida. Parece ser o caso, quando, por mera coincidência dos arquivos do ‘Word’, voltei a ler há dias este texto particular (por mim já sinceramente esquecido).

Um texto desta natureza – centena e meia de páginas, imagine-se! -, obliterado da consciência e apeado de qualquer destino, não passa de um texto morto, embora o cadáver seja de teor realmente diferente do cadavre exquis de que os surrealistas se serviram para refinados cocktails. Há neste texto, no entanto, algo de singular: como que se dá a ver como oferenda sacrificial a si próprio, numa espécie de antropofagia em ilha deserta. As frases, nuas por natureza da escrita guionista, atropelam-se como que a tentarem descobrir para si próprias algum resto de sentido.

Os acontecimentos da história pessoal reflectem muitas vezes os acontecimentos imersos numa comunidade. O efeito surpresa de algo que se enunciou com fins instrumentais e que depois surge como um alerta no curso da existência não é algo assim tão incomum. Durante anos estudei textos que foram escondidos, no final de quinhentos, dentro de alvenarias no levante aragonês. Apenas no final do século XIX viriam a ser descobertos. Nesses textos, havia heranças (textos meramente instrumentais) e registos poéticos luminosos. Um misto que faz hoje ainda arrepiar quem os consiga a ler (trata-se, no breve exemplo que transcrevo aqui em baixo, de um excerto do Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris):

“!- Ainda se levantará (fol.302v), no dia do juízo, um homem da minha comunidade (alumma) na ilha da Andaluzia que fará guerra santa (aljihâd) no caminho de Deus (fí sabíli Allah)./ Não se especificará, nem se saberá (sabrán) quando se levantará o dia do juízo, daqui até que se vejam os montes que (entretanto já) se tenham aplanado (ke se abrán ap(a)lanado)./ Foi relatado pelo mensageiro de Allah, salla Allahu ‘alayhi wa sallam (Deus o abençoe e o salve), que disse:/ – Andaluzia tem quatro das portas do paraíso (aljannat). Um porta a que chamam (fol.fol.303r) Faylonata e outra porta (chamada Lorca), e outra porta a que chamam Tortosa e outra porta a que chamam Guadalajara.”

Da sombra mais profunda da gruta à luz mais impiedosa, dir-se-ia. Como se estivéssemos face a uma poética de ascensão: do subterrâneo da História à lisura do olhar do presente que lê.

Contudo, o exemplo do meu guião não é realmente similar ao exemplo aragonês que acabo de dar. Devo mesmo dizer que, há uma década, redigi um outro guião que deu origem a um filme e, para ser sincero, se o reler hoje, desvendarei nele o mesmo tipo de anatomia de Grey sem qualquer sentido. Ao fim e ao cabo, não é o facto de um texto chegar às filmagens que determina o seu cariz de coisa inócua, insípida e deslavada. Todos os guiões, com a excepção para o brilho raro das grandes safras, são afinal textos que morrem na praia.  Talvez porque são concebidos, não para emocionarem, não para brilharem, não para levantarem voo, mas para servirem. Sim: para servirem com espírito de missão na lucubração dos planos. Pondo de parte o cinema que se fez como ser a pensar em obra de arte, a palavra nasceu para morrer.

Os textos aragoneses que referi não eram guiões concebidos apenas para servir. Mas neles pressente-se, de qualquer modo, um apelo de uma História que já não existe e é esse enigma que constitui a poética que, no meu caso pessoal, também continuo a sentir ao reler o pretenso guião de O Bolor. Ternino este editorial, partilhando, em jeito de mero excerto, a sensaboria dessa escrita sem futuro:

“13. LOCAL DE TRABALHO DE MARIA DOS REMÉDIOS INT/DIA

 

Gabinete de MARIA DOS REMÉDIOS no Laboratório Nacional de Engenharia Civil. ANA, a secretária, pára na frente de MARIA DOS REMÉDIOS e não consegue deixar de perguntar.

ANA

O que é que a senhora doutora tem?

MARIA DOS REMÉDIOS

Não sei Ana, não sei.

ANA

Mas o que se passa?

 

ANA, a secretária, senta-se diante de MARIA DOS REMÉDIOS. E, de repente, cortando com a habitual frieza profissional, MARIA DOS REMÉDIOS começa a chorar e diz frases intermináveis, enquanto a secretária a tenta apoiar.

MARIA DOS REMÉDIOS

Sofremos todos por não termos uma casa fora de Lisboa, ou um Jaguar, ou uma máquina fotográfica com célula fotoeléctrica! E sei lá quantas máquinas mais que fatalmente não podem corresponder ao que há de mais profundo, de mais verdadeiro, de mais puro nas nossas almas. E não nos envergonhamos de sofrer…”