A literatura de cordel high-tech

Harold Bloom revelou, há precisamente três anos, no The New York Review of Books*, que tinha decidido “voltar a ler Shakespeare em vez da Bíblia, depois de ter regressado à vida – foram essas as suas palavras – na sequência de alguns dias de internamento. E a conclusão apareceu então como óbvia: “Não há separação entre vida e literatura em Shakespeare”.

Este “back to life” não podia ser mais auspicioso e até actual. Se a Bíblia é uma imensa alegoria que desliza entre o exemplo e o vivido, o grande dramaturgo inglês foi sobretudo o organizador genial de mil tradições orais que dominavam o seu tempo. É precisamente a mesma diferença que hoje existe entre os acontecimentos que nos media se reproduzem como cerejas, criando cadeias ficcionais, apaixonadas e delirantes e os acontecimentos que se constituem, no nosso dia a dia, como aparições ou vaivéns de conjuntura.

De facto, o público actual procura as grandes metáforas da vida nas narrativas que os media vão desdobrando no quotidiano. E acontece muitas vezes que, a partir de eventos eleitos como notícia, se forma, sem grande controlo por parte dos mecanismos editoriais, uma sequência de alegações, conjecturas, rumores, contribuições, juízos e outros dados adicionais que acabam por transformar a notícia original numa verdadeira cadeia ficcional.

Este processo acelerou-se e tornou-se quase normal no mundo massificado e globalizado, onde prolifera uma certa ambiguidade entre público e privado e onde os factores afectivos e passionais passaram a dominar boa parte da produção e do consumo mediáticos. Existe realmente uma óbvia correspondência entre estas novas cadeias ficcionais – espécie de ‘literatura de cordel high-tech’ – e os mitos da Antiguidade (ou o mundo das parábolas que o sucedeu).

Enfim: Bloom teria razão. Existe uma clara distinção entre o patamar da parábola que reinventa a realidade e o patamar da conta-corrente que a amplia e transfigura (através de personagens e factos que vão e vêm, sucumbem e reaparecem). Para quem recupera de uma doença grave, é normal que este segundo patamar se torne mais aliciante. Mas para quem anda na adrenalina e no stress do dia-a-dia, nada melhor do que umas prestidigitações mágicas aliadas às cerejas. Como se umas e outras fossem verdade.

Quase se pode dizer que a literatura, hoje em dia, tanto se transfigura nos livros e na rede como se actualiza e ritualiza nos media e no ‘zapping’ da euforia massificada do dia-a-dia. Chamemos-lhe a ‘literatura de cordel high-tech’.

Com ou sem cordel, caros leitores, desejo a todos um Bom Natal!

 * The New York Review of Books , Vol. LIV, Nº 18, 22/11/07, p.40.