Um Homem Só | Maria Helena Ventura

SINOPSE DE “UM HOMEM SÓ”

Cumpriu a itinerância de gerações do seu povo, aprendizes dos caminhos da Luz pelas províncias imperiais. Tornou-se adulto entre mercadores, ascetas, homens da lei.

Um dia chegou ao politeúma de Alexandria. Hábil no domínio da palavra, disciplinado por conhecimentos acumulados nas andanças de anos, ganhou o estatuto de rabbi.

Mas o Homem solitário, habituado a cruzar fronteiras físicas e culturais, aprendeu ainda a sabedoria dos terapeutas, praticando o silêncio introspectivo na busca do entendimento da natureza humana em todas as suas dimensões. Percebendo a origem do sofrimento, estava apto a praticar a cura.

A resistência na Diáspora reparou nele. Poderia ser o líder nominal que esperavam? Para pegar em armas o movimento zelote tinha operacionais bem treinados. E aproveitando o chamamento do pai, também ele um destacado membro dos Filhos da Luz, os líderes das comunidades judaicas no Egipto arquitectaram um plano articulado com a resistência dentro da Judeia.

O rabbi estava disposto a regressar à pátria para rever o pai moribundo, para levar palavras de incentivo aos que lutavam pela libertação dos povos. Mas os da Diáspora sabiam que à chegada Yosêph bar Ya´aqôb teria para ele uma missão mais difícil de aceitar.

Todo o cuidado seria pouco na travessia do Sinai, das terras dos edomitas nabateus. Mas o perigo maior vinha do próprio território judaico.

O rabbi chegou, a Palavra passara. Mas ao rever o velho pai  já no limite das forças, Yeshûa era confrontado com a revelação: tinha de preparar-se durante menos de um ano para segurar o ceptro. Seria ele o Messias, o rei judeu esperado por gerações. Precisava casar, gerar linhagem, aceitar as regras impostas pelo cérebro da Nova Aliança sediado no deserto.

Não teve coragem para dizer não a um moribundo. Mas os métodos da resistência na pátria excluíam muita gente, e Yeshûa entendia que todos os homens tinham uma origem e um destino comuns. E que sendo filhos de um só Pai, eram todos irmãos.

Pouco tempo durou o franco alheamento dos poderes. Banhado pela graça da esperança num mundo de equilíbrio fraternal, feliz com o casamento, com a escolha dos companheiros próximos, cedo percebeu que era um Homem cada vez mais só na construção de uma utopia perene.

Nem a maioria dos discípulos entendia ou queria entender o que pregava. A mudança teria um preço que não estavam dispostos a pagar. E o Messias, que nunca chegou a ser ungido, foi condenado pelos poderes como o cordeiro redentor dos pecados de todos os resistentes.

Mas voltaria.

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Por torre de guarda te pus entre o meu povo, por fortaleza,

para que soubesses e examinasses o seu caminho

JEREMIAS, 6.27

            De regresso à casa grande de Tariqueia, Jesus encontra Maria por detrás da janela, a tecer uma manta no tear de pedal. Veste uma túnica de linho tingida com jacinto, tão linda que fica a olhá-la da porta, já a derradeira claridade se esbate contra o maciço de terebinto a rasar a parede exterior.

         A imagem do pai vem-lhe à lembrança como um clarão de luz. Se fosse vivo, ter-lhe-ia perguntado

         Os teus olhos agradaram-se dela?

         E ele apenas teria dito, num embaraço de filho

         Agradaram…

         Ainda sob o calor da emoção, pronuncia o nome tantas vezes dito em silêncio, nas noites de Karem-El

         Miriam…

         Ela levanta-se à pressa, assustada com o chamamento

         Terás de voltar a Beth-Bara…temo pela tua segurança

         Não digas isso, Yeshûa, posso ser muito útil por aqui

         Farei melhor papel se te souber protegida. Mas antes de partires, consegues dar uma palavra às mulheres dos discípulos?

         Não as conheço muito, mas farei o que ordenares

         É apenas um pedido, não uma ordem. Que passem esta mensagem: de agora em diante haverá um caminho comum…só ele levará à salvação, mas é preciso percorrê-lo de mãos dadas

         Tentarei…Não sei se vão entender o significado dessas palavras, mas tentarei

         Talvez devas convencer primeiro as mulheres de Zebedeu e do filho, a mulher de Mattiyahu… Se o conseguires, podem elas convencer as outras, gerando uma cadeia sólida. Precisamos de ter o povo por nós, Miriam

         Precisas é de gente com meios para reorganizar o grupo dos nazireus, em nome de quem falarás…para prover a comunidade de comida e agasalho…seguidores como aqueles que Eleazar trouxe às bodas

         Não cuides tanto, Miriam…as aves do céu não conhecem gente com meios e sempre encontram um ninho, o que comer…

Maria Helena Ventura

Início do CAPÍTULO XXIV do Romance UM HOMEM SÓ, 2ª. edição, publicado pelas Edições Saída de Emergência em Maio de 2010